Enzo Del Nero, mineiro de 26 anos, que já rodou praticamente todo o território norte-americano, conta como é a vida na boleia por lá
Nelson Bortolin
Há cerca de um ano e meio, o jovem brasileiro Enzo Del Nero, 26 anos, desbrava os Estados Unidos pilotando seu caminhão International 4300, o qual apelidou de Tião. Ele mudou-se de Ribeirão Preto (SP) para a Flórida em 2021 com o objetivo de estudar inglês e juntar algum dinheiro. E, como a maioria dos imigrantes, fez de tudo um pouco antes de aceitar o convite para trabalhar numa transportadora.
Mas só atuou como empregado por quatro meses. Neto e sobrinho de caminhoneiros, resolveu apostar no próprio negócio e, junto com um amigo, financiou o Tião, que custou 60 mil dólares, algo em torno de 330 mil reais. Para economizar com aluguel, passou a morar dentro do veículo, algo comum, segundo ele, na “América”.
“O aluguel é uma das coisas mais caras por aqui e, quando você é caminhoneiro, você volta para casa uma, duas vezes no mês, e paga às vezes mil, mil e quinhentos dólares de aluguel (R$ 5,6 mil a R$ 8.400). Então tem bastante gente que opta por morar no caminhão”, explica.
Nesse ano e meio em que trabalha como caminhoneiro, o jovem, que nasceu em São Lourenço (MG), já viajou por praticamente todo o território americano. Dos 50 estados que formam o país, até o dia da entrevista para a Revista Carga Pesada (4 de setembro), ele já havia passado por 46. Faltavam o Alaksa, que é separado dos demais pelo Canadá, e o Havaí, um arquipélago localizado no meio do Oceano Pacífico. Das áreas contínuas, o brasileiro só não havia estado no Maine, no extremo nordeste, e em Dakota do Sul, no centro-oeste, por onde ele iria passar nos próximos dias.
A pedido dos amigos e da família, ele começou a compartilhar pelo Instagram sua rotina na boleia. “Eu vim para fazer intercâmbio nos Estados Unidos com meu irmão e dois amigos. Eles voltaram para o Brasil e não tiveram a oportunidade de conhecer muitos lugares. Então, pediam para eu mostrar as minhas viagens”, explica.
A ideia, segundo ele, nunca foi atingir um público maior. Mas, os vídeos começaram a extrapolar a bolha virtual de Enzo, principalmente depois que o motorista adotou a cadela Hazel, que se tornou sua companheira inseparável.
Hoje, o caminhoneiro tem 300 mil seguidores no Instagram. E a internet tornou-se uma nova fonte de renda.
Por meio de videochamada, Enzo Del Nero conversou com a reportagem e contou como é a vida de caminhoneiro nos Estados Unidos, quanto o profissional ganha em média, como são os pontos de parada e descanso e os perrengues de dirigir sob neve e frio extremo. Confira:
Renda de 4,5 mil dólares
Embora seu avô e seu tio tenham sido caminhoneiros no Brasil, Enzo nunca havia trabalhado na boleia. Ele conta que os Estados Unidos só exigem carteira de habilitação profissional para veículos com peso bruto de mais de 26 mil pounds – algo próximo a 12 tonelada. Como seu caminhão não ultrapassa esse limite, nem precisou de nova licença para começar a dirigir.
Depois dos primeiros quatro meses como empregado, o jovem adquiriu o International, modelo 4300, ano 2015, em sociedade com um amigo. O veículo custa 60 mil dólares (R$ 330 mil). Eles deram uma entrada de 40% do valor e estão financiando o resto. Como o sócio já tinha ouros negócios, não foi difícil obter o crédito.
“Eu transporto basicamente tudo que está paletizado. Já carreguei, por exemplo, eixo de caminhão, eixo de carro, portas, copos plásticos, motor de avião, tudo que é seco, que não seja material inflamável, a gente carrega”, explica.
Segundo ele, o transporte de carga não vive seu melhor momento nos Estados Unidos. Mas, mesmo assim, tem conseguido tirar um salário que varia de 3,5 mil a 4,5 mil dólares (de R$ 19.600 a R$ 25.200 mil), dependendo do mês. E ainda sobra dinheiro para pagar as prestações do caminhão e fazer investimentos na empresa. “Se tivesse ocorrido como a gente planejava há um ano, a gente já estaria pensando na compra do segundo caminhão. Mas a situação não está tão boa”, afirma.
Um colega dele, que está há mais tempo na profissão, conta que cobrava 3,30 dólares por milha rodada (um milha representa cerca de 1,6 km), antes da pandemia. Com a crise do novo coronavírus, assim como no Brasil, o mercado de transporte aqueceu por la, e esse valor chegou ao pico de 4,5 dólares. Mas hoje não passa de 2,2 dólares. “Durante a pandemia, muita gente passou a trabalhar como caminhoneiro, muito estrangeiro, inclusive.”
Depois que o mercado voltou à normalidade, esse excesso de mão de obra teria derrubado o valor do frete. “Além disso, tem o fato de ser um ano eleitoral e a economia não estar bem. Todo mundo fala isso”, afirma. No entendimento do brasileiro, se o ex-presidente Donald Trump vencer as eleições de novembro, a situação vai melhorar para os caminhoneiros. “Nosso planejamento agora é segurar como está, e quando o mercado melhorar, a gente voltar a investir”, declara.
Para conseguir fretes, o brasileiro conta com o serviço de um profissional. “Aqui, a gente chama de despachante, que é um pessoal que fica procurando os fretes para a gente. Então eu tenho um brasileiro que trabalha para mim e eu pago uma porcentagem para ele.”
Segurança para dormir
Se, por um lado, nos Estados Unidos, o caminhoneiro também trabalha muito – Enzo faz de 60 a 70 horas por semana -, a infraestrutura à disposição do profissional é bem melhor por lá. Segundo ele, pelo menos a cada 100 milhãs (160 km), existe uma área de descanso. “Essas áreas já vêm junto com posto de gasolina. Aqui, o caminhoneiro não paga para dormir, independentemente de você ter abastecido ou não.”
Redes como a Walmart, de acordo com ele, também disponibilizam seus estacionamentos para os motoristas.
Enzo não tem medo de ser assaltado, nem mesmo quando transporta carga valiosa. “Nunca ouvi falar de caminhoneiro que foi parado e saqueado na estrada.” Ele já transportou carga de 6 milhões de dólares. “Dificilmente, eles (os contratantes) lacram o caminhão ou fazem escolta.”
Banheiro gratuito e limpo
O caminhoneiro também não precisa pagar pelo banho nos Estados Unidos. Na maioria dos lugares, o banheiro é bem estruturado e limpo. “Às vezes, como estou agora na Dakota do Norte, numa rodovia de pista simples, tem menos opções. Então, provavelmente, no posto daqui, o banheiro vai ser mais simples. Mas é um caso ou outro.”
No Instagram, o brasileiro mostra uma determinada rede de postos na qual o motorista recebe um cartão magnético para entrar num banheiro exclusivo para ele. “Eu sou meio encarnado com higiene. Quando eu vou tomar banho no posto, eles têm sabonete deles, shampoo deles, toalha deles. Eu não uso nada disso”, conta.
Academia quase todos os dias
Apesar das boas condições dos banheiros, Enzo não costuma tomar banho em posto de combustível. Ele prefere fazer isso na academia. Por incrível que possa parecer, o motorista vai à academia quase todos os dias. Ele é cliente de uma rede que tem 3 mil unidades pelo país.
Ao custo de 24,9 dólares mensais (R$ 140), o cliente pode se exercitar na maior parte das cidades. “Se eu rodo 700, 800 km por dia, eu tenho 95% de chance de encontrar uma academia todos os dias”, conta. Se não encontra uma, ele corre nos pátios dos postos de combustível. “A maioria dos caminhoneiros americanos mais velhos são como os brasileiros: não se exercitam. Mas a nova geração, com menos de 30 anos, costuma fazer atividade física. É muito comum você encontrar caminhoneiro correndo, pulando corda, puxando um ferro na estrada.”
Cozinha improvisada no caminhão
Se a infraestrutura é muito boa para o caminhoneiro nos Estados Unidos, não se pode falar o mesmo da comida oferecida nas rodovias. “Não tem restaurante de rodovia igual no Brasil, que oferecem refeições. Aqui é só fast food. Você vai num posto e tem um Burger King.”
E esse hábito americano, o brasileiro não pretende adotar. Mesmo que tenha o trabalho de cozinhar uma vez por semana e congelar as refeições para comer nos outros dias. “Faço sempre arroz, batata, dois ou três tipos de carne e legumes.” Além das refeições principais, ele também prepara lanches na boleia. “Dá para fazer um pão com queijo na chapa, por exemplo.”
O jovem diz que sua família sempre teve o cuidado de alimentar-se bem. “Meus pais não costumavam comprar coisas como Cheetos e Coca-Cola para a gente”, explica. Para garantir alimentação o mais saudável possível, ele também faz acompanhamento com um nutricionista.
A casa sobre rodas
Para morar na boleia, o brasileiro fez algumas adaptações importantes no seu International, que originalmente tem cabine simples. Ele mandou construir a cama num espaço que abriu no baú. “Entre a cabine e o baú tem um vão, que é selado por uma borracha, assim de sanfona, e a gente fez um buraco ali”, explica.
O caminhoneiro também adaptou o veículo com uma power station a fim de garantir a energia necessária para manter a geladeira do caminhão ligada 24 horas e utilizar o forno de micro-ondas, quando necessário. O jovem também carrega na boleia itens como liquidificador, torradeira, aquecedor portátil e secador de cabelo.
O caminhão ainda conta com armário de madeira para guardar roupas e mantimentos.
O influenciador
Enzo Del Nero diz que nunca gostou muito de rede social e sempre foi uma pessoa reservada. Mas fez uns Instagram para ter contato mais fácil com a família e os amigos. “Eu compartilhava minha rotina apenas com eles. No começo, como tudo era novidade, por cada estado que eu passava, eu postava. Mas não achava que isso pudesse interessar a outras pessoas.”
O perfil dele na rede social, no entanto, começou a ganhar seguidores. “A galera começou a se interessar pelo conteúdo, pela questão da rotina, de eu morar num caminhão, de ter uma alimentação saudável”, conta.
No dia da entrevista, ele havia batido a marca de 300 mil seguidos no Instagram. “Já cheguei a ficar um mês sem postar nada, mas hoje em dia comecei a levar mais a sério isso e posto um ou dois vídeos por dia.”
Ele mesmo editava e publicava seus conteúdos, mas, devido ao aumento do número de posts, foi preciso contratar um profissional que passou a ajudá-lo a cuidar das redes sociais. Hoje, ele já conta com algumas publicidades. “Estou investindo num projeto para as redes crescerem e eu poder monetizar mais.”
Hazel, a companheira inseparável
Um dos vídeos mais acessados no Instagram do Enzo é o que ele mostra como adotou a cachorrinha Hazel, ainda bebê. Foi num posto de combustível, onde ele encontrou duas cadelas com filhotes, uma pitbull e outra vira-lata. Chamou a atenção o fato de um dos cachorrinhos da vira-lata estar mamando na pitbull. Era a Hazel. “A mãe dela estava com nove filhotes e a pitbull só com três”, explica.
Os bichos estavam sob os cuidados de um sem-teto que estava no posto. Em troca de um equipamento de videogame, essa pessoa deu a filhote para o motorista. Hoje ela está com sete meses e é sucesso nas redes sociais.
O desafio da neve e do frio extremo
Rodar no inverno tem sido um desafio para o brasileiro, principalmente em lugares onde a temperatura pode chegar a 25 graus negativos. Enzo já chegou a ficar quatro horas parado na estrada interrompida pelo gelo. “A gente tem de esperar amanhecer e o pessoal vir retirar a neve com trator”
Mas esse não é o único problema. As baixas temperaturas podem congelar o diesel. Para evitar isso, o caminhão tem de ficar ligado a noite inteira. “Às vezes, até o motor congela”, conta.
As baixas temperaturas também podem matar. De modo que o aquecedor do caminhão fica ligado 24 horas por dia. Por uma questão de segurança, Enzo carrega também um aparelho portátil e adquiriu um saco de dormir fabricado para proteger a pessoa em temperatura de até 40 graus negativos. “Se acontecer de o motor parar, eu tenho o saco de dormir para me proteger pelo menos amanhecer. Quando você começa a ter contato com essas situações extremas, você se prepara mais”, conta.
2 Comentários
Adorei a reportagem sobre esse caminhoneiro parabéns a revista carga pesada pela linda reportagem desse jovem caminhoneiro lá fora…
Só a título de comparação, o salário aqui é muito defasado em relação ao de lá. Não dá pra entender o porquê de as empresas não paragarem um salário justo aqui no Brasil e ficarem fomentando a rotatividade de motoristas e desestimulando a retenção de funcionários.